ENTREVISTA
‘Ciência é feita por pessoas em atmosfera de interesses’, diz pensador
Antonio Lafuente, pensador espanhol, físico e pesquisador em História
Por Nelson Pretto
Desde 2020, tenho me encontrado pessoalmente com Antonio Lafuente, um pesquisador espanhol do Departamento de História do Conselho Superior de Investigação Científica (CSIC/Madrid), autor que já estava em minhas referências bibliográficas desde muito, algumas delas trazidas por colegas que também admiro muito, a exemplo de Sarita Albaglil, Henrique Parra, Marcelo Branco, Karla Brunet, entre outros. Os escritos dele estavam presentes em minhas reflexões sobre o papel da ciência e, principalmente, sobre o ensino. Nossas sintonias, no passado, eram por conta de pensar a Física para além da matemática, olhando mais de perto os fenômenos e sua história. Posso dizer que essa forma de ensinar a Física encantava meus estudantes do ensino médio e da graduação na Universidade Federal da Bahia (Ufba), como constato até hoje ao encontrar com esses ex-alunos (as). Depois, vim acompanhando Lafuente por conta de sua imersão mais profunda na análise da ciência e dos estudos sobre ciência aberta e cidadã. Quando em 2020 vim para a Espanha, mais precisamente para a Universidade de Barcelona, pesquisador visitante (posdoc/Ufba/CapesPrint), busquei os contatos dele para iniciarmos algumas conversas ao vivo, que vêm durando todo esse tempo. Foram encontros no CSIC, em almoços e aperitivos sempre com bons vinitos e comidas. Conversas divertidas e profundas foram se consolidando em minha memória e, ao longo do tempo, se transformam em uma longa conversa. Uma parte ao vivo e de memória, outra gravada, e outra, a maior, por e-mail mesmo, apesar de estarmos na mesma cidade. Antonio Lafuente acaba de se aposentar do CSIC, tem planos pela frente, vasta obra publicada em espanhol e outras línguas e uma presença intensa nas redes com vídeos de conferências, entrevistas e depoimentos sobre temas de pesquisa, notadamente a ciência aberta e cidadã, a mundanização da ciência e o mais novo/antigo foco: os laboratórios cidadãos e a prototipagem. Uma versão estendida da entrevista será publicada no meu novo livro Conexões Escola-mundo: uma rede em progresso, cujo lançamento deve acontecer em breve. Vamos à conversa.
Você nasceu em Granada, formou-se em Física e logo migrou para pesquisar a história da ciência. Como foi esse primeiro encontro?
A resposta é óbvia: me apaixonei por uma moça com a qual queria me casar, e na história da ciência encontrei uma possibilidade para dar-lhe a razão a Hobbes: primum amorem, deinde philosophare (“primeiro amar, depois filosofar”). A verdade é que, naquela época, me interessavam muitas coisas e o amor ao conhecimento podia conjugá-lo sem a matemática. Essa mulher me premiou com três filhos, assim penso que não me equivoquei.
Parece que não se equivocou também em olhar para a ideia de uma ciência mais aberta. A ciência está inacessível para as pessoas?
Minha primeira surpresa foi descobrir que as histórias da ciência daquela época, faz 40 anos, somente se interessavam por historiar as grandes descobertas. Eram cúmplices da pobre e mesquinha ideia de que a ciência é só uma atividade mental dominada por super-heróis e acompanhada por um exército de trabalhadores da prova, como lhes chamou Bachelard, e por seus sucessivos mecenas. Descobri que a maior parte dos países do mundo não se encontrava entre essas histórias da ciência. Me surpreendeu que um relato tão banal tivesse tantos seguidores. Como físico, me escandalizava que a separação entre a ciência e a tecnologia fosse tão estrita, e que essa separação tivesse tantos devotos. Me surpreendia que aqueles historiadores não se interessavam pela relação sofisticada entre o conhecimento e as máquinas. Era incrível que não se fizesse história que explicasse as múltiplas conexões que surgem entre ciência e império, entre ciência e capitalismo ou entre ciência e poder, tanto religioso quanto econômico ou militar. A essa visão a chamavam história social da ciência ou perspectiva externalista. Vendo isto desde nossa atualidade, tudo aquilo não somente era simplista, mas também funcionava como um conto mais ideológico do que científico. No fundo, pensando com certo senso de humor, era uma contação de histórias entre os bons e os maus. Para nós, abrir a ciência a essas preocupações era fundamental, se queríamos ser historiadores da ciência. Íamos à rua e víamos nosso mundo repleto de objetos técnicos: energia nos edifícios, água nas casas, carros nas ruas, antibióticos nos hospitais, combustíveis nos aviões e comida nos restaurantes. Tudo isso existia porque éramos capazes de movimentar enormes quantidades de conhecimento, tanto teórico quanto prático, local e inovador. A ciência não era coisa que estava somente em alguns lugares privilegiados. Era algo onipresente que exigia muitos profissionais comprometidos, e também muita infraestrutura. Entender isto foi algo que demandou muito esforço. [...] Abrir a ciência, naquele momento, era abrir a caixa de pandora. Obrigava-nos a olhar para ela como uma atividade humana e descobrir que aqueles gênios também podiam ser misóginos, sociopatas, criminais, traidores e psicopatas. Abrir a ciência era contar outras histórias, visibilizar outros personagens, expôr outras possibilidades. Implicava alargar o espaço público, fazer justiça epistêmica e questionar a hegemonia do discurso colonial, machista, capacitista, racionalizador e supremacista.
Você fala, então, da ideia de uma descolonização da ciência?
A ciência é feita por pessoas que estão inseridas numa atmosfera de interesses, motivações e desejos que adotam, com frequência, a aparência de serem individuais, mas que na realidade são mais discursivos, estruturais e ambientais, do que meras opções pessoais. Os cientistas também poderiam estar dando forma aos anseios de outros para atingir interesses obscuros. A maior experiência histórica dessas condutas complexas é o Projeto Manhattan, no qual, como se sabe, grandes grupos de pesquisa, design e desenvolvimento criaram a bomba atômica. Sabemos que algumas pessoas chave nesse projeto foram pedir ao presidente norte-americano que não lançasse as bombas porque a guerra já tinha terminado. Sabemos que eles não foram escutados e que o lançamento foi uma forma de ameaçar a antiga União Soviética. Muitos dos físicos envolvidos naquela operação se sentiram frustrados, usados e traídos. Por serem novos líderes culturais, eles tiveram consciência de que eram manipuláveis e de que tinham sido meros instrumentos ao serviço dos sonhos imperialistas de gente sem escrúpulos. Além de desiludidos, comprovaram que ser cientista não tinha nada de inocente. Na realidade, já tinham sido advertidos por Mary Shelley e tínhamos centenas de casos que provavam o fácil que havia sido para eles trabalhar a serviço de projetos nada louváveis, desde a invenção da guilhotina na Revolução Francesa ao bombardeio com gases tóxicos na I Guerra Mundial. E não é necessário falar de guerras para encontrar cientistas conseguindo “provas conclusivas” de que os negros, indígenas e mulheres são menos capacitados. Temos provas demais para discutir o que afirmamos. Não estamos dizendo que a ciência seja uma empresa ideológica, banal e insignificante, cheia de gente que não presta, imoral e egoísta. Poderíamos ter escolhido centenas de casos que provam o contrário. Abundam os exemplos de gente trabalhando pelo bem comum. Sobre isso não temos a menor dúvida. Nossa intenção não é fazer um julgamento sumário que traga responsabilidades. Esse gesto nunca me interessou. Não tenho uma ação judicial contra a ciência. Sou cientista. Do que estamos falando é do fácil que tem sido para os cientistas assumir como próprios os preconceitos de cada época. Um exemplo mais: em medicina sabemos muito pouco sobre como evoluem certas patologias no corpo das mulheres, algo que fica muito evidente quando cientistas mulheres têm discutido se os modelos masculinos de doença podem ser generalizados ao corpo feminino. De forma lenta temos tido de aprender a descolonizar nossa cabeça de machos alfa ocidentais e tirar de nossas cabeças tanto preconceito supremacista e misógino. Termino como comecei: os cientistas vivem sua época e levam, como o resto dos cidadãos, múltiplas e enganosas adesões ideológicas ou culturais. Lutam contra elas, quando são conscientes da forma que a agenda de prioridades é montada em outras instâncias, sejam políticas, militares, industriais, econômicas ou via os ativistas. Existe muita pesquisa ao redor do conceito undone science que nos mostra até que ponto as decisões nas agências de avaliação e financiamento se tomam a serviço de interesses corporativos, abandonando, ou colocando poucos recursos, em pesquisas que promovem o bem comum ou antepõem as medidas preventivas às curativas.
Você acredita que as atuais estruturas das universidades e centros de investigação possibilitam isso? Esse é um modelo esgotado?
Bem, isso não é uma ideia recente, pessoal nem estranha. Talvez não seja nem radical. Que a universidade está em crise é um fato proclamado em todas as línguas e púlpitos. Outra coisa é que saibamos como agir perante isso. Quando as universidades adquiriram autonomia, muitos pensaram que essa seria a oportunidade para que cada uma delas propusesse o que fazer. Estávamos equivocados: a autonomia não era o santo graal. Todas optaram por decisões muito conservadoras. Somente tiveram como motivação o já conhecido. Impuseram-se os desvios corporativos. Quando vemos como as universidades manifestam com orgulho sua condição de autônomas, mas entregam ao Google suas contas de e-mail, não é suficiente com mostrar uma certa ironia. Deveria ter uma revolução: os professores deveriam negar-se a usá-las. E não vamos falar dos alunos! Quando vemos a prática vigente e inveterada da aula magistral, e continuamos a chamar a isso de educação superior, deveríamos dizer basta como pais que já frequentamos uma universidade e conhecemos a pobreza de suas práticas pedagógicas. [...] Como já tenho falado do câncer que habita a academia, e que chamamos de excelência, não me estenderei sobre o assunto. Mas que fique claro que somos uma multidão os que não vamos cansar de lutar contra esse baluarte do mais rançoso neoliberalismo.
Em um artigo recente você traz a suspeita sobre o espírito crítico. Os especialistas já não são mais necessários?
Nunca direi que sobram os especialistas: o único que reprovo é que não sejam mais humildes e aceitem que as perguntas e respostas devem ser produzidas junto com os interessados. Tenho-lhes visto inquietos porque “os que não sabem” tomam a palavra. Às vezes, se comportam como se não suportassem seu jeito de falar ou de habitar o espaço público. Não entendem que com frequência estão conversando com gente que não teve o privilégio de uma educação apropriada e que sofre um problema que ninguém quer ou sabe entender. A relação entre a crítica e a função dos especialistas não é direta. Todos falam do espírito crítico como se fosse o talismã para se proteger da manipulação informativa, simbólica e política. As escolas de negócios pregam o espírito crítico e o colocam entre as virtudes mais necessárias para movimentar-se por este tormentoso mundo. O espírito crítico deixou de ser uma arma defensiva para ser uma ferramenta ofensiva. Serve para desestabilizar o outro, encontrar as fissuras em seu discurso e atacá-lo até que ele reconheça nossa superioridade. Na academia, se usa como um mecanismo depurador de ideias. A forma normal de exercê-lo é produzir perguntas “inteligentes” que mostrem as carências no discurso alheio. Quem escuta reconhece e agradece a contribuição recebida. Tudo funciona com aparente bom estilo e sutileza. Não deixa de ser uma competição pelo reconhecimento. Funciona como uma crítica velada. O espírito crítico, então, é o nome que identifica uma competição acadêmica autorizada. Uma forma a mais de destacar, se sobressair. Parece um exercício de depuração, mas é de seleção. Isso não é natural!
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